Thursday, August 31, 2006

 

E esta, hein?

(Fotografia: Olga Correia)

Wednesday, August 30, 2006

 

Como ensinar a pescar quem só quer receber o peixe?




Sempre fui, e continuo a ser, adepta de que a melhor forma de ajudar alguém é ensinar a pescar em vez de dar o peixe. O peixe dado de forma ocasional sacia pontualmente, não garante o alimento para o resto da vida. O ideal é ajudar as pessoas a serem independentes, a desenvencilharem-se sozinhas, a saberem procurar, encontrar e desenvolver os seus próprios recursos.

Mas no meio desta teoria idealista e romântica (eu reconheço) há um pequeno grande pormenor que às vezes (talvez infelizmente muitas) faz emperrar o processo: nós partimos do princípio de que as pessoas querem ser ajudadas, de que querem ser auto-suficientes , mas… e se não quiserem?

Conheci recentemente uma moça que esteve a fazer um estágio em África. Uma das atribuições da equipa de que fazia parte era ensinar os autóctones a fazer criação de animais e a transformá-los num meio de subsistência. Deram um conjunto de galinhas a cada família, explicaram muito bem, com todo o empenho e cuidado, como cuidar delas e como usar os ovos para alimentação e também para reprodução.

Quando voltaram, pouco tempo depois, para ver como estava a decorrer a experiência, não encontraram ovos, nem pintos, nem galinhas. Tinham sido transformadas no alimento do dia em vez de tratadas para serem o alimento de todos os dias.

Esta moça foi cheia de entusiasmo e de ideias para mudar o mundo, e voltou… digamos que com as suas teorias um pouco abaladas…


(Imagem: Ralph Lee Hopkins, Fisherman with Catch on Beach, Seychelles)

Tuesday, August 29, 2006

 

Entre o céu e o inferno




(Este é dedicado especialmente à Rosa dos sorrisos que anda a debater-se com as incoerências do amor…)


O Amor
E alguém disse:
Fala-nos do Amor:

- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.
E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem
vos possa ferir.

E quando vos falar, acreditai nele;
apesar de a sua voz
poder quebrar os vossos sonhos
como o vento norte ao sacudir os jardins.

Porque assim como o vosso amor
vos engrandece, também deve crucificar-vos
E assim como se eleva à vossa altura
e acaricia os ramos mais frágeis
que tremem ao sol,
também penetrará até às raízes
sacudindo o seu apego à terra.

Como braçadas de trigo vos leva.
Malha-vos até ficardes nus.
Passa-vos pelo crivo
para vos livrar do joio.
Mói-vos até à brancura.
Amassa-vos até ficardes maleáveis.

Então entrega-vos ao seu fogo,
para poderdes ser
o pão sagrado no festim de Deus.

Tudo isto vos fará o amor,
para poderdes conhecer os segredos
do vosso coração,
e por este conhecimento vos tornardes
o coração da Vida.

Mas, se no vosso medo,
buscais apenas a paz do amor,
o prazer do amor,
então mais vale cobrir a nudez
e sair do campo do amor,
a caminho do mundo sem estações,
onde podereis rir,
mas nunca todos os vossos risos,
e chorar,
mas nunca todas as vossas lágrimas.

O amor só dá de si mesmo,
e só recebe de si mesmo.

O amor não possui
nem quer ser possuído.

Porque o amor basta ao amor.

E não penseis
que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos escolher,
marcará ele o vosso curso.

O amor não tem outro desejo
senão consumar-se.

Mas se amarem e tiverem desejos,
deverão se estes:
Fundir-se e ser um regato corrente
a cantar a sua melodia à noite.

Conhecer a dor da excessiva ternura.
Ser ferido pela própria inteligência do amor,
e sangrar de bom grado e alegremente.

Acordar de manhã com o coração cheio
e agradecer outro dia de amor.

Descansar ao meio dia
e meditar no êxtase do amor.

Voltar a casa ao crepúsculo
e adormecer tendo no coração
uma prece pelo bem amado,
e na boca, um canto de louvor.

Khalil Gibran, O Profeta


(Imagem: Fotografia Olga Correia)

Monday, August 28, 2006

 

A gaveta do mistério



Houve uma frase que me chamou hoje e que me fez parar para pensar. É de Osho e era suposto estar a indicar-me o tipo de energias que me estão a afectar e de que não estou consciente. “A vida não é uma empresa para ser gerida, é um mistério para ser vivido.” Certo, pensei, eu acredito nisso, sempre acreditei, sempre considerei a vida o maior dos milagres, o mais valioso dos tesouros. Sempre achei que lhe dava o valor merecido e que a sabia viver, aproveitando cada momento, interagindo com a natureza, com os outros, com Deus… Isto terá alguma coisa a ver comigo? Estarei de alguma forma a tentar gerir a vida como uma empresa? A querer controlar e encaminhar as coisas à minha maneira? Eu que até nem gosto de tentar controlar acontecimentos nem influenciar situações ou condicionar o que quer que seja porque acredito que o universo encaminha tudo da forma certa sem a minha interferência… Isto está a tentar dizer-me alguma coisa?

E cheguei a uma conclusão depois de algum matutar sobre o assunto (não é à toa que lhe chamam tendências inconscientes). Acho que a nível emocional e espiritual encaro a vida como um mistério, uma dádiva, com abertura ao fluir da vida, mas ao nível intelectual tenho andado a tentar organizar e catalogar emoções, acontecimentos, situações, mensagens, etc. como se tivesse um grande armário mental com várias gavetas rotuladas onde cada coisa tivesse de ser encaixada. Isto vai para a gaveta do preto ou do branco? Do bom ou do mau? Do que acho que sim ou do que é melhor não? E há coisas que não cabem em gavetinhas bem organizadas e etiquetadas, há coisas que me ficam nas mãos sem eu saber onde colocar. E aqui está o meu erro, querer colocar tudo no seu compartimento devidamente identificado.

E então percebi como a frase se aplicava a mim como uma luva. Não estava a querer controlar mas estava a querer classificar. Também não dá. Pelo menos não sempre. Pelo menos não sempre no momento em que gostaríamos. E percebi também o que tinha de fazer, deixar de ter gavetas, ou então criar uma gaveta extra, bem grande, maior do que as outras, com o título “Mistério” onde se pode colocar tudo o que não cabe em nenhuma das outras, tudo o que parece caótico e sem nexo e ainda assim tão real. Porque nem tudo tem de ser gerido, identificado e percebido. Há coisas que simplesmente temos de aceitar com todo o seu mistério, talvez mais tarde se revele a sua natureza e o seu propósito, ou talvez não, mas enquanto isso é melhor não gastar energia a tentar enquadrá-las no contexto de uma gaveta pré-etiquetada.

Porque há coisas que não são pretas nem brancas mas uma das tonalidades de cinzento intermédias. E há outras que podem até parecer cinzentas mas são um arco-íris disfarçado, e quando chegar o sol, no momento certo, elas revelar-se-ão.

Portanto, para “viver o mistério” não se trata apenas de o aceitar emocionalmente e espiritualmente, é necessário também abrir mão da necessidade de classificar o que nos chega e colocar no que achamos que é a respectiva gaveta. Melhor mesmo era abdicar de toda e qualquer gaveta. Liberdade total.


(Imagem: Fotografia Olga Correia)

Saturday, August 26, 2006

 

Manifesto Anti-Medo



Esta semana a RTP2 passou em repetição um programa da "Revolta dos Pastéis de Nata" que tinha como temática o medo. É bom, vez por outra, lembrarmo-nos da existência deste tirano.

Pois o medo é uma coisa terrível que em nada nos ajuda, que nos tolhe, que nos aprisiona e nos impede não só de darmos o melhor de nós como de conseguirmos apreender e usufruir das coisas boas que a vida tem para nos dar.

Estou convencida de que o medo é o nosso pior inimigo. Há muitos tipos de medo e muitas formas de se manifestar, desde as maiores atrocidades, cometidas muitas vezes hipocritamente em nome de valores nobres, às mais pequenas do dia-a-dia que nos impedem de sermos felizes, e que são, talvez, igualmente atrozes.

Não vou enumerar os muitos medos que cada um de nós pode ter, bem escondidos lá no fundo, a corroer o que temos de melhor. Cabe a cada um identificar os seus monstrinhos, trazê-los para a consciência e fazer-lhes frente. Só assim nos podemos libertar. Sim, porque para viver a vida em totalidade, em plenitude, não se pode estar à espera de não ter medo, pelo contrário, deve-se ter a coragem de avançar apesar do medo. E isso não é coisa fácil. Exige muito de nós, mas vale a pena, como quase tudo o que é importante na vida.

Eu tenho andado a fazer esta caminhada, entre outras. Tenho andado em luta com os meus medos. É verdade que sou muito forte em muitos aspectos, mas também não me safo de uma boa dose de monstrinhos atormentadores, quase todos carregados na sacola desde há muitos anos, alguns mais escondidos e menos óbvios, outros a olhar-me mesmo ali de frente. Alguns já consegui vencer, outros ainda precisam de mais umas pancadas. Na verdade, acho que a batalha nunca está definitivamente ganha, é um processo que dura a vida toda, vão-se uns, vêm outros, e o desafio é ir tentando enfrentá-los a todos de modo a que não nos impeçam de sermos quem somos, ou quem poderíamos ser.

Termino com um excerto traduzido de um música de Chris Tomlin, “A Forma como fui Criado”, na esperança de que todos nós consigamos a força necessária para dizer não ao medo.

Eu quero viver como se não houvesse amanhã
Quero dançar como se não houvesse ninguém por perto
Quero cantar como se ninguém me estivesse a ouvir

Quero dar como se tivesse muito
Quero amar como se não tivesse medo
Quero ser o homem que era suposto ser
Quero ser da forma como fui Criado.


(Imagem: Diana Ong, Forms of Fear)

Thursday, August 24, 2006

 

Ame...















“Ame, você pode morrer no próximo domingo”
Lauro Trevisan


Ame.
O sol, o céu, o ar que respira…
Ame.
A flor, a árvore, o animal que passa…
Ame.
A criança, o adulto, o idoso que suspira…
Ame.
A si e a todos. Ame a tudo de graça…
Ame.


(Imagem: Fotografia Olga Correia)

Wednesday, August 23, 2006

 

Porquê o preto?


O recente falecimento de uma tia minha levou-me a questionar mais uma tradição que eu não compreendo. Porquê o luto? Por que é que quando alguém morre é suposto fazer-lhe uma homenagem vestindo preto?

Várias vezes perguntei aos acérrimos defensores de tal trajar e só obtive duas respostas, muitas vezes repetidas:

1. "Usa-se o preto para revelar a nossa tristeza". E eu pergunto:
a) Então é o que se veste que diz se estamos tristes ou não?
b) Não é possível alguém vestir-se de preto e não sentir qualquer tristeza? E alguém vestir qualquer outra cor sentindo-se profundamente triste?
c) E a perda da pessoa não é já suficientemente entristecedora, é preciso acentuar isso? Não seria mais sensato usar cores que trouxessem alguma alegria para amenizar?

E a seguir vem a resposta número 2: "Tem de ser assim, para os outros não dizerem mal". Ora, aí está o que me parece ser a verdadeira questão, o medo do que os outros dizem. Não importa verdadeiramente o que se sente ou o que se pensa sobre o assunto, o problema são os outros. E assim vai toda a gente vivendo com medo da língua alheia e nunca se muda nada.

Quanto a mim, já o disse a várias pessoas, aos que forem ao meu funeral eu peço que vão de branco. Porque eu acredito que passando desta vida se vai para outra melhor, a morte para mim não é assustadora, por isso não quero ninguém triste no meu funeral. E quem for não leve preto, é um favor que me faz. O branco é a cor do espírito e usá-lo é que é para mim a verdadeira homenagem, revela o desejo de que o espírito possa ascender à sua verdadeira casa.


(Imagem: Hampton Hall, Calla Lily)

Sunday, August 20, 2006

 

O lobo bom e o lobo mau



A propósito dos dois últimos textos sobre amor / necessidade / expectativa, dei por mim a pensar, um destes dias, que queria livrar-me de todo o tipo de necessidade. Porque a necessidade é uma prisão, porque nos torna dependentes, porque nos faz sentir incompletos. E logo a seguir percebi como era um disparate o que estava a pensar, nós não podemos simplesmente “livrar-nos”, sem mais nem menos, do que está dentro de nós.

E ocorreu-me que com isto se deve passar o mesmo que com a história do lobo bom e do lobo mau. Li um dia, não sei onde, sobre um pai que explicava a um filho que dentro de nós existem dois lobos, o bom e o mau, que estão sempre em luta um com o outro.
- Então e qual é que ganha, pai? – Pergunta o filho.
- Ganha aquele que tu alimentares mais vezes. – Responde-lhe o pai.
Parece-me que a lógica é a mesma. Se lutarmos contra o mau, se o tentarmos expulsar, estamos, de certa forma, a alimentá-lo e ele torna-se mais forte. Se, pelo contrário, lhe negarmos o alimento (a atenção, a concentração nele) ele enfraquecerá e, quem sabe, definhará.

Então é isso, acho eu, não podemos “livrar-nos” da necessidade a não ser alimentando a abundância. Isto é, alimentando as coisas boas em nós, gostando cada vez mais de nós próprios, e, absolutamente fundamental, valorizando cada vez mais aquilo que temos e não nos concentrarmos naquilo que pensamos que nos faz falta. Em suma, alimentando o lobo bom.


(Imagem: Susan Seddon Boulet, In The Company of Wolves)

Friday, August 18, 2006

 

O poder da aceitação ou o grilhão da expectativa




Recentemente veio ter comigo o Cavaleiro da Armadura Enferrujada, de Robert Fisher. Uma das ideias aqui transmitidas fez-me voltar a pensar sobre a forma como reagimos ao que nos acontece (antes e depois de acontecer). Diz-se a dada altura:

“Quando aprenderes a aceitar em vez de imaginar, terás menos decepções.”

“Os animais aceitam e os humanos criam expectativas. Nunca ouvirás um coelho dizer: «Espero que hoje de manhã esteja sol para eu poder ir até ao lago brincar.» Se não estiver sol, isso não estragará todo o dia ao coelho. Ele é feliz só por ser um coelho.”

Um dia de cada vez. E sem expectativas. É a melhor maneira de viver, dizem os espiritualistas. E até que ponto conseguimos nós fazer isto? É muito difícil. Estamos sempre preocupados com o que passou e com o que se vai passar. Se estivermos bem atentos, verificamos que a maior parte do nosso tempo (ou pelo menos uma grande parte) se gasta nisto. E que grande erro nós estamos a cometer…
O ontem passou, o amanhã ainda não chegou e hoje é o único momento que temos para usufruir da vida em toda a sua plenitude.

Dá que pensar. Porque será que nos preocupamos tanto com o que foi e com o que será? Porque não nos conseguimos concentrar mais no que é? Talvez porque temos expectativas e medos. Expectativas que gostaríamos de ver realizadas, portanto, gostaríamos que as coisas decorressem como nós queremos e programamos, e medo de que isso não aconteça. Medo de perder o que conseguimos, medo de não ter o que queremos.

Ter e querer. Dois verbos que nos fazem mal. Quando temos e queremos estamos dependentes das nossas posses e dos nossos desejos, ficamos agarrados, temos medo de os perder. Se conseguíssemos ter uma atitude de desapego, de menos obsessão, de maior libertação, conseguiríamos relaxar, confiar nas leis do universo (ou do que lhe quisermos chamar), usufruir da vida plenamente e ser muito mais felizes. Porque será que não conseguimos fazer isto? Estamos muito materialistas, muito dependentes do ego. Quando conseguirmos libertar-nos dessa prisão e passarmos a dar mais valor ao “ser” do que a qualquer outro verbo vamos estar no caminho da evolução.

(Imagem: Eric Kamp, Ball and Chain, Open Shackle and Lock on Floor)

Wednesday, August 16, 2006

 

Pedincha ou doação?



“Há palavras que nos beijam” diz um verso de Alexandre O’Neill. A mim apetece-me hoje dizer: Há expressões que nos marcam.

E a que me marcou desta vez foi “amor pedinte”. Já muitas vezes vi este conceito, exposto de várias maneiras, mas esta expressão, “amor pedinte”, teve sobre mim um efeito mais dramático. Visualizei logo um desgraçadinho a representar o amor, tão pobre que precisa de pedir para sobreviver.

E pensei: Realmente, quem é que quer amar ou ser amado com um amor pedinte, carente, pobre, em falta?... É certo que não é fácil, somos humanos, temos tendência a querer que nos preencham os nossos vazios, que nos curem as nossas feridas, que alguém venha com uma varinha mágica e nos transforme em pessoas completas, felizes, realizadas… Mas isso não vai acontecer. No máximo pode alguém colocar-nos um “penso”, mas curar a ferida, a partir de dentro e não de fora, é de nossa responsabilidade. Exclusiva. E com que frequência nos esquecemos disto!...

Quem não tem está em falta (parece uma das verdades da Lili!), e pede; quem tem está bem, equilibrado, em abundância, e dá. Não, não é fácil, é muito mais cómodo pedir que alguém nos dê do que desenvolver em nós aquilo de que necessitamos, é mais fácil enganarmo-nos pensando que só quando tivermos connosco o objecto do nosso amor vamos ser felizes, só quando nos corresponder (ou “só quando” outra coisa qualquer) é que vamos conseguir apreciar o arco-íris. Que ilusão. Vemos isto tudo trocado. A felicidade não é construída de fora para dentro (dependendo dos outros), mas de dentro para fora (dependendo de nós). A vida só se torna plena quando deixarmos de ser pedintes e passarmos a ser doadores.

O amor verdadeiro implica dádiva, não carência, e para sabermos amar temos de estar bem sozinhos primeiro, felizes, realizados, cheios de amor para dar. Caso contrário somos pedintes, mendigos a pedinchar a atenção e o amor dos outros. Tentamos esconder esta verdade debaixo do tapete para ninguém ver, nem nós, mas enquanto não tomarmos consciência disto não estamos a viver todo o nosso potencial, tudo aquilo para que fomos feitos, que pode ser tanto, se nos dispusermos a deixar de viver cronicamente doentes.


(Imagem: Fotografia Olga Correia)

Saturday, August 12, 2006

 

Há dias assim...



(Imagem: Fotografia Olga Correia)

Wednesday, August 09, 2006

 

Uma mensagem de tão grande amor tinha mesmo de ter como símbolo a cruz?




Ainda na sequência dos símbolos e do que isso diz de nós, e ainda a propósito da imagem que fazemos de Deus, ocorreu-me outra questão que tem a ver com a forma como o simbolizamos. A cruz, símbolo tão generalizado e representativo de Cristo, também revela, no fundo (ou talvez não tão no fundo), o que nós pensamos que foi a sua mensagem, a sua missão por aqui, a lição que veio ensinar. É capaz de ser a maior lição de amor que se conhece, e como é que nós o identificamos? Com o símbolo da crucificação, o símbolo do sofrimento.

A cruz é um instrumento de tortura. É usada para lembrar o que ele sofreu pela humanidade. Que ele sofreu muito parece-me um facto inegável, e que esse facto deve ser lembrado também, mas com isto corremos o risco de perder de vista o essencial. A propósito do filme A Paixão de Cristo, diz-me um dia um jovem católico (e professor de Educação Moral e Religiosa Católica):
- Agora percebo ainda melhor como foi grande o sofrimento de Jesus.
- Só isso? – Pergunto-lhe.
- Como assim?
- E como foi grande a lição de amor que veio ensinar?

Por que optamos por lembrar o seu sofrimento em vez de lembrar o seu amor? Por que nos focamos no facto de ele ter sofrido por nós em vez de nos centrarmos no muito que amou e na lição que nos quis ensinar? Ele passou a vida a ensinar o amor. Como se sentirá agora sempre identificado com a dor?

Correndo o risco de ser acusada de mais um atrevimento (ou de quaisquer outras coisas que lhe possam querer chamar), não posso deixar de manifestar aquilo que penso. Parece-me que a mensagem de Cristo anda a ser distorcida. Sim, ele sofreu; sim, foi torturado numa cruz; sim, foi pela salvação da humanidade. Mas foi por AMOR, e é isso que deve ser lembrado, valorizado, aprendido, seguido…


(Imagem: André Burian, Crucifixion)

Saturday, August 05, 2006

 

Os presentes dizem muito...



Não resisto a transcrever um excerto de Rubem Alves que encontrei um destes dias e que achei muito curioso (na versão de Português do Brasil, como o encontrei).


Quando a gente dá uma coisa a gente está dizendo o que pensa do outro que recebe o presente. Dou água para a planta porque sei que planta gosta d\'água. Dou um osso para um cachorro porque sei que cachorro gosta de osso. Dou alpiste para um passarinho porque sei que passarinho gosta de alpiste.

Isso vale também para os presentes que damos às pessoas. Eu estava com um casal amigo fazendo compras numa loja de presentes. Muitas eram as opções. Entre elas uns aventais lindos, coloridos, finos. Era ver e sentir-se tentado a dar um de presente para a mulher. Minha amiga, esposa do meu amigo, me segredou baixinho: “Se ele (o marido) me der um avental de presente, eu me divorcio..." Claro! O presente estaria dizendo: “Querida, como você fica bonita na cozinha!" Mas ela não queria ser definida como cozinheira. O presente diz o que a gente pensa que o outro é.

Um CD de música clássica diz que o outro, tal como ele existe na minha cabeça, é um apreciador de música erudita. Se o CD for de sax-jazz já a imagem do outro será diferente, mais sensual. Um livro de poesia dirá ao outro que ele (ou ela) é uma pessoa sensível e amante do silêncio. Panelas, ferramentas, brinquedos, echarpes, cuecas de seda, sutiãs de rendinha, um livro de arte erótica, uma garrafa de vinho, Bíblias e terços, caixas de bombons: cada um desses presentes diz ao outro o que penso dele.

Deus também merece presentes. Deus também quer ficar feliz. As pessoas que dizem gostar dele tratam de dar-lhe presentes (como os Magos) - os melhores, os que lhe darão maior prazer. Presentes para fazer Deus sorrir de felicidade, presentes para fazer Deus voltar a ser criança! O presente que dou deve ser a realização do desejo do outro. E quais são os desejos de Deus - a se acreditar nos presentes que lhe são oferecidos?

Antigamente os mais devotos, para fazer Deus ter prazer, se autoflagelavam com chicotes e coisas pontudas. Quando eu era menino vi mulheres carregando pesadas pedras nas cabeças, como presente a Deus. Hoje estas coisas viraram presentes brega. Deus melhorou, e só aceita cascas de feridas mais delicadas. Na casa de presentes a Deus se encontram, por exemplo, as seguintes opções: subir, de joelhos, o caminho até a igreja do Pe. Cícero; subir, de joelhos, a escadaria da Igreja da Penha; arrastar uma cruz, a pé, por cinqüenta quilômetros; ficar sem comer por três dias; abster-se de beber cerveja por todo um mês; não tomar Coca cola por nove meses; não transar ou não se masturbar até que a graça seja concedida.

O que dizem tais presentes sobre o caráter de Deus? Dizem que ele não é Deus, é um ser monstruoso, sádico, que fica feliz quando nós sofremos; corrupto, concede graças a troco de dor. Se eu fosse Deus trataria de me mudar para bem longe, um outro universo onde só houvesse plantas e animais. Plantas e animais entendem mais de Deus do que nós. Portanto, com um pedido de perdão por tanta ofensa, sugiro que na passagem do ano façamos promessas bonitas a Deus, promessas que digam que o achamos normal e bonito como nós. Ele não é sádico. Não tem orgasmos quando nós sofremos. Ele sofre quando sofremos e dá risadas quando damos risadas. Assim, se oferecermos presentes de felicidade ele ficará feliz e voltará. Como exemplo aqui vão algumas das promessas que farei.

Vou andar diariamente, sem obrigação de fazer exercício, por algum bosque ou jardim desse universo maravilhoso, por puro prazer. Vou comprar uma cachorrinha cocker-spaniel.

Vou gastar tempo observando o vôo dos pássaros, a forma das nuvens, a folhagem das árvores. Vou ver de novo O Poeta e o Carteiro. Vou fugir do agito, do ruído, da confusão. Vou cultivar a solidão e o silêncio: um espaço sagrado. Vou fazer um jardim Zen, com água e sinos que o vento toca. Vou ouvir muita música, canto gregoriano, Bach, Beethoven, Mahler, César Franck. Vou ler o Fernando Pessoa inteiro. Vou aprender a cozinhar. Vou receber os amigos. Vou beber cerveja, vinho, Jack Daniels. Vou brincar, com coisas e com pessoas.

Que Deus me ajude. E que ele se alegre com minhas promessas.

(Transparências da eternidade, Verus, 2002)


(Imagem: Leslie Xuereb, Fruit Offering)

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