Tuesday, August 28, 2007

 

A lição do chocolate


Eu passei muito tempo a gostar de Coqui, o chocolate em pó que os meus pais usavam lá em casa. Como é um produto difícil de encontrar comecei a usar Nesquik, achando que era a segunda melhor opção, mas sempre convencida de que era o Coqui o chocolate em pó da minha vida.

Um destes dias tive acesso ao referido produto. Fiquei contente, afinal era o número 1 da minha lista. Na primeira oportunidade fui, cheia de entusiasmo e expectativa, usar o produto de eleição. Mas qual não foi o meu espanto quando me apercebi de que afinal o dito chocolate não era assim tão bom, e não se comparava afinal com o que eu considerava o número 2. Ainda pensei que fosse um problema de ocasião, que por algum motivo tivesse o barómetro do paladar (ou paladómetro, ou coisa que lhe valha) a bater mal.

Experimentei mais umas quantas vezes para tirar as dúvidas. E tirei, ficou confirmado que tinha andado imenso tempo a acreditar numa mentira e a ser injusta com o Nesquik (talvez fosse bom pedir alguma comissão por esta publicidade toda…). Mentira porque fiquei agarrada a uma ideia do passado, fiquei apegada à noção de que aquele era o melhor chocolate que já tinha provado e que só não o usava porque não estava acessível, mantive a idealização do produto que me era negado, coloquei-o no pedestal e deixei-o lá ficar, intacto, imperturbável, intocável, sem concorrência de qualquer outro que me surgisse no caminho. E injustiça porque nesta obsessão não me apercebi de que afinal o que eu estava a usar é que era o melhor, aquele de que eu gostava mais, comparando depois com o primeiro não me restaram quaisquer dúvidas.

Tudo isto me levou a mais uma aprendizagem sobre a vida. Muitas vezes achamos que queremos ou que gostamos muito de algo só porque não o temos, mantemo-nos ligados ao ideal que fizemos dele, e quando temos a oportunidade de o ter descobrimos que afinal não tinha nada a ver, não era o que eu pensava, não era daquilo que eu mais gostava, não era o que tinha a ver comigo.

E relembrei uma lição que eu achava que já tinha aprendido: mantermo-nos agarrados ao passado é um erro crasso, impede-nos de valorizarmos devidamente o presente. Talvez naquele momento aquele chocolate fosse efectivamente o meu número 1, mas agora ele definitivamente não é, e eu estava a desvalorizar o que tenho no presente achando que o do passado é que era bom.

Moral da história: se a cada momento soubermos libertar-nos das obsessões e dar o devido valor ao que temos descobrimos que a cada momento temos o nosso número 1 e devemos valorizá-lo como tal.

(Imagem: Mar Alonso, Cacao)

Thursday, August 02, 2007

 

Se...















Se podes conservar o teu bom senso e a calma
No mundo a delirar para quem o louco és tu...
Se podes crer em ti com toda a força de alma
Quando ninguém te crê...Se vais faminto e nu,
Trilhando sem revolta um rumo solitário...
Se à torva intolerância, à negra incompreensão,
Tu podes responder subindo o teu calvário
Com lágrimas de amor e bênçãos de perdão...

Se podes dizer bem de quem te calunia...
Se dás ternura em troca aos que te dão rancor
(Mas sem a afectação de um santo que oficia
Nem pretensões de sábio a dar lições de amor)...
Se podes esperar sem fatigar a esperança...
Sonhar, mas conservar-te acima do teu sonho...
Fazer do pensamento um arco de aliança,
Entre o clarão do inferno e a luz do céu risonho...

Se podes encarar com indiferença igual
O triunfo e a derrota, eternos impostores...
Se podes ver o bem oculto em todo o mal
E resignar sorrindo o amor dos teus amores...
Se podes resistir à raiva e à vergonha
De ver envenenar as frases que disseste
E que um velhaco emprega eivadas de peçonha
Com falsas intenções que tu jamais lhes deste...

Se podes ver por terra as obras que fizeste,
Vaiadas por malsins, desorientando o povo,
E sem dizeres palavra, e sem um termo agreste,
Voltares ao princípio a construir de novo...
Se puderes obrigar o coração e os músculos
A renovar um esforço há muito vacilante,
Quando no teu corpo, já afogado em crepúsculos,
Só exista a vontade a comandar avante...

Se vivendo entre o povo és virtuoso e nobre...
Se vivendo entre os reis, conservas a humildade...
Se inimigo ou amigo, o poderoso e o pobre
São iguais para ti à luz da eternidade...
Se quem conta contigo encontra mais que a conta...
Se podes empregar os sessenta segundos
Do minuto que passa em obra de tal monta
Que o minuto se espraie em séculos fecundos...

Então, ah ser sublime, o mundo inteiro é teu!
Já dominaste os reis, os tempos, os espaços!...
Mas, ainda para além, um novo sol rompeu,
Abrindo o infinito ao rumo dos teus passos.
Pairando numa esfera acima deste plano,
Sem receares jamais que os erros te retomem,
Quando já nada houver em ti que seja humano,
Alegra-te, meu filho, então serás um homem!...

RUDYARD KIPLING
(tradução de Féliz Bermudes)


(Imagem: Om-Lumen, Coração2)

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