Tuesday, October 23, 2007

 

A fome e a vontade de comer




Encontram-se dois amigos na rua e ficam admirados com o aspecto um do outro.
- Eh, amigo! Há quanto tempo!... Como é que estás? Desculpa que te diga mas tens um péssimo ar… roto, sujo, maltrapilho e cabisbaixo… que se passa contigo?
- Olha, é a vida. É esta pobreza de sempre, a sorte não quer nada comigo. Não tenho ninguém que me ame, ninguém que trate de mim, ninguém que me ajude em nada… Mas e tu? Olha que falas de mim mas o teu aspecto não deve ser muito melhor do que o meu, parece que acabaste de ser desenterrado. Fazes-me lembrar o ditado popular “diz o roto ao nu porque não te vestes tu”. As coisas não te correm bem?
- Bem?!? Já não sei o que isso é! A vida tem sido madrasta comigo, não me tem dado nada do que eu queria, vivo triste e sem ninguém, … um farrapo de gente abandonado.
- Eh pá, acabei de ter uma ideia que talvez resolva os nossos problemas. Se tu estás triste porque estás sozinho e eu ando deprimido porque não tenho ninguém, por que não nos juntamos os dois e fica tudo resolvido?
- Talvez até nem seja má ideia… Podemos experimentar.
E experimentaram, de facto, mas não se deram muito bem com a experiência. A questão central é que os dois se sentiam em carência e achavam que o outro é que tinha de contribuir com alguma coisa para a sua felicidade.
- Assim não dá, já começo a ficar farto! Afinal estou contigo não sei para quê, não cuidas de mim, não me ajudas, não me fazes as vontades…
- Olha, olha! Passou-se! Tomara eu que cuides tu de mim! Por que é que achas que me juntei a ti? Para ter quem me fizesse feliz!
- Então vieste bater à porta errada, porque eu não sei fazer nada disso, se soubesse fazia-o por mim próprio e já não estava dependente de ti para isso…
- Agora é que disseste bem, e acabei de descobrir uma grande verdade: sou eu que tenho de cuidar de mim, não posso estar à espera de quem venha em meu auxílio. Queixo-me de que a sorte não me dá nada mas eu também não tenho feito nada por mim, para mudar a minha vida.
- Acho que tens razão, sim. Muito bem visto. Obrigada, amigo. Estou cheio de vontade de começar de novo, de assumir a responsabilidade por mim próprio, a todos os níveis. E algo me diz que com isso toda a minha vida vai mudar e que uma onda de abundância me espera.

Moral da história:
Ninguém pode dar aquilo que não tem.
A vida responde à atitude com que a vivemos.
Quem quiser encontrar o amor e a felicidade deve começar por procurar dentro de si próprio.


Estou cada vez mais convencida de que os males do mundo provêm todos da mesma raíz: falta de amor. Falta de amor ao próximo e ao mundo, mas sobretudo falta de amor ao próprio.

Nas relações as pessoas buscam o amor dos outros para colmatar a falta de amor a si próprias. Sentem falta de amor e pensam que a solução está em procurá-lo, pedi-lo, exigi-lo aos outros. É uma forma de se enganarem, é uma forma de esconderem de si mesmas a sua própria falta de amor.

Há uns tempos, em conversa com uma amiga eu dizia-lhe que achava que as pessoas procuravam ficar juntas pelos motivos errados. “Que motivos errados?” perguntou-me ela. “Para não ficarem sozinhas”, respondi-lhe. “E isso é errado? Por que outro motivo é que as pessoas haveriam de querer ficar juntas?”, questionou depois. “Por amor”, foi a minha resposta.

Quando queremos estar com os outros para não estarmos sozinhos estamos com vários problemas:
a) não conseguimos estar bem connosco próprios;
b) se não conseguimos estar bem connosco próprios é porque não gostamos de nós o suficiente;
c) se não temos suficiente amor por nós vamos tentar encontrar alguém que nos ame, que nos dê o amor de que estamos em falta, que não conseguimos dar a nós próprios;
d) alguém vai tentar suprir essa necessidade, e nós vamos exigir cada vez mais que o faça;
e) vamos passar a vida a cobrar, a depender do que vem do exterior, e se por algum motivo deixar de vir ficamos perdidos sem saber como preencher aquela lacuna.

Quem está bem consigo próprio tanto está bem sozinho como acompanhado. Quem tem amor por si próprio tem amor para si e para os outros, quem não tem amor por si próprio não tem amor por si nem para dar a ninguém.

Não me refiro ao amor egoísta que só pensa em si próprio, mas ao amor altruísta que se nutre a si para estar em condições de poder amar e nutrir os outros, para que na relação com os outros se possa colocar numa posição de dador (porque tem para si próprio e para dar) e não de carente (porque não tem nem para si nem para dar e precisa de receber).

Até as questões de agressividade são, em última instância, uma expressão da falta de amor. Quem se ama e respeita a si próprio ama e respeita naturalmente o próximo. Como se pode saber amar o próximo se não se sabe amar o próprio?

As relações humanas, em grande parte dos casos, formam-se na carência, no ideal, desejo ou exigência de que o outro venha preencher esse vazio… E se o outro, que também não se sabe amar e por consequência não nos sabe amar a nós, não está em condições de nos dar o amor de que estamos em falta (porque também ele não tem) e ainda está à espera que sejamos nós a compensar as faltas dele? Complicado, não é? E não vale a pena recorrer àquela frase que diz que cada um ama o outro e assim se compensam, as coisas não funcionam por substituição, funcionam em cadeia e interligadas, ou seja, quem se sabe amar a si próprio sabe amar os outros e a vida, quem não se sabe amar a si próprio não sabe amar os outros. Não conseguindo fazer a aprendizagem de primeiro nível (amor a si) não consegue fazer a aprendizagem do segundo (amor ao outro), e muito menos dos seguintes (amor universal, transcendente e incondicional).

E uma questão fundamental é que mesmo que se tivesse muita gente (pais, companheiros, amigos, …) à nossa volta a amar-nos e a presentear-nos com todo o tipo de acções e emoções nutridoras, se não gostássemos de nós próprios tudo isso seria em vão, continuaríamos a achar que não éramos dignos de amor e a sentirmo-nos pobres. Apesar do muito que nos possam valorizar e amar, se nós não sentirmos essa valorização e esse amor por nós, de nada adianta (são exemplo disso alguns casos de artistas bem amados pelo público e mal amados por si próprios que atentaram contra a própria vida).

É grande a diferença entre viver e amar na dependência ou em liberdade. Do ponto de vista de quem recebe, o que preferíamos, ser amados por uma pessoa carente e dependente, que pensa que nos ama para que lhe preenchamos a necessidade de ser amado, que vive constantemente a pedir que amor lhe seja dado, ou por uma pessoa que não está dependente do nosso amor, que tem amor suficiente para si próprio e para dar, que não fica de rastos se por algum motivo não receber num determinado momento a dose do amor que nós lhe damos para sobreviver?…

Nenhuma relação de verdadeiro amor deve partir da carência, da necessidade, da falta. Pelo contrário, deve ter origem na abundância, no desejo de partilha do muito que se tem para dar. E esse processo começa dentro de nós.


(Imagem1: Tarot Rider Waite, Five of Pentacles
Imagem 2: Magnet,
I Love Me
Imagem 3: Anna Flores, Love Story)

Monday, October 15, 2007

 

Voltas a ser como criança

Se és princípio, inauguração, amanhecer.
Se não ocupas o teu tempo a contar a vida
mas a comprometeres-te com ela.
Se não queres parar nem retroceder.
Se falas de projectos, de esperanças.
Se inundas tudo de primavera.
Se ouves o futuro a chamar por ti.


Voltas a ser como criança
Se não te deixas abater.
Se sabes rir de ti mesmo.
Se superas o medo e situações ridículas.
Se reconheces ser débil, frágil.
Se detestas o fingimento e a mentira.
Se aceitas servir os irmãos.
Se não vives no passado.



Voltas a ser como criança
Se aceitas o inesperado.
Se és transparente.
Se foges das sombras e caminhas na luz.
Se desejas o infinito.
Se não desanimas perante os naufrágios da vida.
Se achas que nada é impossível.

Voltas a ser como criança.

J. F. Moratiel

(Imagem 1: Harrison Rucker, Nature’s Child
Imagem 2: Mai-Thu, La Ronde
Imagem 3: Danny Hahlbohm, Christ and Child)


Friday, October 05, 2007

 

Prioridade à Educação. Mas que Educação?




Neste feriado nacional os discursos centraram-se no que se considera uma prioridade: a educação. Prioridade, diz o presidente da República, e eu estou de acordo, mas parece que o problema é que não se sabe como levar a bom porto esta prioridade.

Sucessivas reformas e imposições ministeriais não têm conseguido resolver um problema de longa data que não só se mantém como se tem agravado.

A filosofia subjacente à recente reforma parece-me muito positiva e respeitadora dos alunos como seres humanos em formação, com identidades, experiências de vida e características distintas, advoga o respeito pelos seus interesses e pelos seus ritmos de aprendizagem, reforça a importância do desenvolvimento de competências e da consciência cívica, realça o “saber” (conhecimentos) aliado ao “saber fazer” (competências) e ao “saber ser” (atitudes). Porém, contraria paradoxalmente esta filosofia impondo condições que tornam muito difícil a sua implementação. Entre outras, o número de alunos por turma e os exames finais são um exemplo disso. O número de alunos porque sendo idealmente 30, na perspectiva do Ministério da Educação, ou pelo menos um mínimo obrigatório de 25, dificulta o processo de apoio, orientação, ajuda e acompanhamento de cada aluno, com as suas características, dificuldades e ritmos próprios, num espaço de tempo de 45 ou 90 minutos. Se os pais considerarem as necessidades dos seus 1, 2, ou 3 filhos e multiplicarem por trinta tudo o que isso implica, verão que não é muito fácil. Os exames finais não tanto por si só como por aquilo em que transformam o processo de ensino-aprendizagem. Estes exames foram adquirindo um estatuto de quase bicho papão fazendo com que muitos professores se sintam na obrigação de se concentrarem nos resultados dos exames mais do que no desenvolvimento das competências, mais no saber do que no saber fazer e ser. Até compreendo que seja necessária alguma forma de aferição, mas esta não está a funcionar da melhor forma, leva a que muitos se apeguem ao ensino tradicional, ao método maioritariamente expositivo, a uma visão do aluno como um depositório e posterior despejatório de informações, quando o principal objectivo deveria ser o desenvolvimento da pessoa como um todo.

A educação é uma prioridade, sem dúvida, mas, na minha perspectiva, o investimento na educação não passa tanto por reformular os programas ou por melhorar as condições materiais das escolas, por fornecer portáteis aos alunos ou por aderir aos smart boards, mas muito mais por mudanças de ATITUDE. Dos pais, dos professores e dos alunos. De que adianta querermos garantir todas as condições materiais, acesso a informação, modernas tecnologias, novas escolas… mantendo práticas caducas e atitudes pré-históricas?

Enquanto os pais considerarem que a sua função na educação dos filhos é comprar-lhes os manuais e levá-los à escola, depositando-os lá para serem formados, como dizia hoje o PR, desresponsabilizando-se da sua função de primeiros e fundamentais formadores, o ensino vai continuar mal.
Enquanto os professores se preocuparem mais em formar alunos para ter sucesso nos exames do que para ter sucesso na vida, enquanto se valorizar mais a capacidade de memorização e despejanço nos testes do que a capacidade de reflectir, mais a repetição do que a liberdade, o ensino vai continuar mal.
Enquanto os alunos não souberem valorizar as oportunidades de educação como um bem essencial (que muitos gostariam de ter e não têm), enquanto não quiserem empenhar-se (porque exige trabalho e esforço) na aprendizagem (porque não se pode ensinar quem não quer ser ensinado), enquanto não acreditarem que são capazes de conseguir e que não precisam de ter como meta o “dezito” só para passar se podem fazer o seu melhor e trabalhar para o 20, o ensino vai continuar mal.

Prioridade, sim, mas como? É preciso parar para pensar. O que queremos verdadeiramente da nossa educação? Que tipo de cidadãos desejamos formar? Que tipo de valores e conhecimentos queremos transmitir? Como vamos fazer para lá chegar? Qual o papel de cada um neste processo? Se não soubermos exactamente o que queremos e que caminho percorrer para o conseguir corremos o risco de andar todos perdidos sem chegar a lado nenhum. É preciso uma reflexão séria e participada, traçar o mapa do caminho, e depois trabalhar todos em conjunto para lá chegar. Os jovens e o futuro dependem disso.

(Imagem1: Kay Lamb Shannon,
School Days
Imagem 2: Pablo Picasso, The Lesson
Imagem 3: Pam McCabe, More Than Lessons)

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