Saturday, August 05, 2006

 

Os presentes dizem muito...



Não resisto a transcrever um excerto de Rubem Alves que encontrei um destes dias e que achei muito curioso (na versão de Português do Brasil, como o encontrei).


Quando a gente dá uma coisa a gente está dizendo o que pensa do outro que recebe o presente. Dou água para a planta porque sei que planta gosta d\'água. Dou um osso para um cachorro porque sei que cachorro gosta de osso. Dou alpiste para um passarinho porque sei que passarinho gosta de alpiste.

Isso vale também para os presentes que damos às pessoas. Eu estava com um casal amigo fazendo compras numa loja de presentes. Muitas eram as opções. Entre elas uns aventais lindos, coloridos, finos. Era ver e sentir-se tentado a dar um de presente para a mulher. Minha amiga, esposa do meu amigo, me segredou baixinho: “Se ele (o marido) me der um avental de presente, eu me divorcio..." Claro! O presente estaria dizendo: “Querida, como você fica bonita na cozinha!" Mas ela não queria ser definida como cozinheira. O presente diz o que a gente pensa que o outro é.

Um CD de música clássica diz que o outro, tal como ele existe na minha cabeça, é um apreciador de música erudita. Se o CD for de sax-jazz já a imagem do outro será diferente, mais sensual. Um livro de poesia dirá ao outro que ele (ou ela) é uma pessoa sensível e amante do silêncio. Panelas, ferramentas, brinquedos, echarpes, cuecas de seda, sutiãs de rendinha, um livro de arte erótica, uma garrafa de vinho, Bíblias e terços, caixas de bombons: cada um desses presentes diz ao outro o que penso dele.

Deus também merece presentes. Deus também quer ficar feliz. As pessoas que dizem gostar dele tratam de dar-lhe presentes (como os Magos) - os melhores, os que lhe darão maior prazer. Presentes para fazer Deus sorrir de felicidade, presentes para fazer Deus voltar a ser criança! O presente que dou deve ser a realização do desejo do outro. E quais são os desejos de Deus - a se acreditar nos presentes que lhe são oferecidos?

Antigamente os mais devotos, para fazer Deus ter prazer, se autoflagelavam com chicotes e coisas pontudas. Quando eu era menino vi mulheres carregando pesadas pedras nas cabeças, como presente a Deus. Hoje estas coisas viraram presentes brega. Deus melhorou, e só aceita cascas de feridas mais delicadas. Na casa de presentes a Deus se encontram, por exemplo, as seguintes opções: subir, de joelhos, o caminho até a igreja do Pe. Cícero; subir, de joelhos, a escadaria da Igreja da Penha; arrastar uma cruz, a pé, por cinqüenta quilômetros; ficar sem comer por três dias; abster-se de beber cerveja por todo um mês; não tomar Coca cola por nove meses; não transar ou não se masturbar até que a graça seja concedida.

O que dizem tais presentes sobre o caráter de Deus? Dizem que ele não é Deus, é um ser monstruoso, sádico, que fica feliz quando nós sofremos; corrupto, concede graças a troco de dor. Se eu fosse Deus trataria de me mudar para bem longe, um outro universo onde só houvesse plantas e animais. Plantas e animais entendem mais de Deus do que nós. Portanto, com um pedido de perdão por tanta ofensa, sugiro que na passagem do ano façamos promessas bonitas a Deus, promessas que digam que o achamos normal e bonito como nós. Ele não é sádico. Não tem orgasmos quando nós sofremos. Ele sofre quando sofremos e dá risadas quando damos risadas. Assim, se oferecermos presentes de felicidade ele ficará feliz e voltará. Como exemplo aqui vão algumas das promessas que farei.

Vou andar diariamente, sem obrigação de fazer exercício, por algum bosque ou jardim desse universo maravilhoso, por puro prazer. Vou comprar uma cachorrinha cocker-spaniel.

Vou gastar tempo observando o vôo dos pássaros, a forma das nuvens, a folhagem das árvores. Vou ver de novo O Poeta e o Carteiro. Vou fugir do agito, do ruído, da confusão. Vou cultivar a solidão e o silêncio: um espaço sagrado. Vou fazer um jardim Zen, com água e sinos que o vento toca. Vou ouvir muita música, canto gregoriano, Bach, Beethoven, Mahler, César Franck. Vou ler o Fernando Pessoa inteiro. Vou aprender a cozinhar. Vou receber os amigos. Vou beber cerveja, vinho, Jack Daniels. Vou brincar, com coisas e com pessoas.

Que Deus me ajude. E que ele se alegre com minhas promessas.

(Transparências da eternidade, Verus, 2002)


(Imagem: Leslie Xuereb, Fruit Offering)

Comments:
Sempre achei que só se deviam comprar presentes para quem se conhece realmente. E é uma verdadeira arte.
Quanto à segunda parte, e embora seja católico, religião que normalmente alberga tais promessas, não aprovo minimamente essas prácticas que provêm de uma fé de tradição e não de uma fé adulta. Para mim, Deus está dentro de cada um e só em viagem interior conseguimos encontrá-Lo.

Beijo
 
Olá Olga,

Estava no blog do André Lasak procurando dicas para o meu "caminho", parto dia 23 de Setembro (vou fazer o Caminho de Santiago) e vi o teu comentário. Decidi dar uma vista de olhos no teu blog e estou aqui só para te dizer que deves continuar, gostei muito do que li e vi (tens fotos lindas).
Espero que decidas fazer o Caminho de Santiago pois tens uma visão muito interessante das coisas e certamente terás um diário de viagem fantástico.
Tudo de bom para ti (e, já tenho o teu blog nos meus favoritos).
Ultreya!!
Helena (39 anos - Lisboa)
 
Muito bom.
Que texto bonito e que bom lê-lo hoje.
Beijinhos nortenhos,
Sara
 
Tim_Booth: Uma verdadeira arte, sem dúvida, que requer sensibilidade e atenção ao outro…
Quanto à segunda parte, também concordo. Neste momento não sou católica, mas já fui, e muito no início, quando ainda não reflectia como devia sobre a tradição imposta, ainda fiz uma ou outra cena desse género. Ainda cheguei a ir a pé a Fátima, por exemplo. Serviu de aprendizagem para perceber que Deus não se alimenta dessas coisas. Agora ainda gosto muito de fazer essas caminhadas mas pelo simples prazer da atitude contemplativa, de apreciar a paisagem interna e externa, da pausa para reflexão, de recarregar baterias, de contactar com o divino, que, como dizes, está dentro de nós, mas também em tudo e em todos à nossa volta…
Jinho

Helena: Tantas palavras bonitas! Obrigada pela simpatia. Sinto-me lisonjeada… :)
Que bom que vais fazer o caminho de Santiago, adorava fazê-lo, ando com essa ideia já há tempos. Sinto que o farei, quando o Universo me mostrar que é o momento certo. Espero notícias do teu “caminho”, e depois já sei a quem pedir dicas, he, he…
Tudo de bom para ti também.

Maracujá: Que bom que gostaste.
Beijinhos do Oeste
 
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