Sunday, September 07, 2008

 

Escravidão? Cegueira? Ou…?

Eu até me considero uma pessoa pacífica e tolerante, mas há situações que às vezes ateiam este meu triplo fogo.

O incidente deu-se com uma encarregada de educação que foi convocada para ir à escola dar um parecer sobre um relatório de retenção repetida da sua filha, sendo-lhe facultada a opção de apresentar os argumentos (e havia vários) que considerasse pertinentes para pedir uma reavaliação da situação, aproveitando uma última oportunidade para transitar de ano. A directora de turma, disposta a ajudar a senhora a fazer o dito documento, disse-lhe que tinha de ser até às duas horas porque às duas e meia reunia-se o conselho pedagógico que ía analisar e decidir sobre essa situação. Até aqui tudo normal. O que já não foi nada normal (ou será normal e eu é que sou lírica?) foi a reacção da senhora:
- Ah, não, tenho muita pena mas a essa hora não posso, tenho de fazer o almoço.
“Tenho de fazer o almoço?!?” A directora de turma duvidou que tivesse ouvido bem. Ainda considerou a hipótese de não ter sido muito clara e explicou de novo que era a última oportunidade de poder ajudar a filha a passar de ano.
- Pois, mas eu tenho de dar o almoço ao meu marido.
- Pronto, a senhora é que sabe o que é mais importante para si, ajudar a sua filha a salvar um ano de trabalho ou dar o almoço ao seu marido!

Isto chateia-me. Não consigo evitá-lo. O nível de escravidão chega a este ponto? As mulheres sentem-se tão prisioneiras desse compromisso inadiável, insubstituível, inalterável, que nem por um dia, nem por causa de um filho, deixam de servir o almoço ao marido?

Infelizmente, esta senhora não é a única a sofrer da tara “almoço obrigatório ao marido”. Muitas outras fazem parte do clube. E é assim, pelas ruas desta amargura, que anda a feminilidade e a maternidade neste (recanto do) país.

Feminilidade porque a mulher assumiu que é sua e de mais ninguém a obrigação de prover alimento, de confeccionar comida, de a dispor sobre a mesa (dá-la na boquinha e talvez até já triturada, não?), obrigação inquestionavelmente sua e a que não pode fugir. E o que acontece se ela não o fizer? O marido bate-lhe? O marido morre de fome? Coitadinho, talvez estivesse na hora de se tornar vagamente, minimamente, independente e de aprender a fazer pelo menos uma sandes, porque há dias em que a “criada”, por algum motivo, pode ter de se ausentar.

E maternidade porque uma mãe supostamente zela pelo bem-estar do seu filho, porque esse sim é dependente enquanto não tiver idade e meios para ser autónomo. Zelar pela sua vida, pelo seu presente e pela preparação do seu futuro, estar atenta, ver como pode ajudar, etc..Tentar recuperar um ano de trabalho escolar parecia-me caber nesta categoria. Mas a mãe não podia dispensar essa atenção à filha porque aquele era o horário sagrado de fazer o almoço. Este outro alimento, o amor, o carinho, o cuidado, a preocupação, o esforço para ajudar, … era muito mais importante. Mas, ao que parece, são alimentos incompatíveis, a mãe não pode cuidar do futuro da filha porque tem de tratar do estômago do marido.

Sem mais comentários.


(Imagem 1: Todd Gipstein, Close View of Heavy Door to a Cell in the Doges Prison
Imagem 2: art print, Serving-Maid
Imagem 3: John Gabriel Stedman, Punishment of Two Black Female Slaves)


Comments:
Não tenho comentários..
 
Eu também não.
:)
 
Post a Comment



<< Home

This page is powered by Blogger. Isn't yours?